Introdução
Basta observar o céu noturno a qualquer momento do ano para perceber uma faixa de luz tênue que se estende pelo céu, na porção central do firmamento ou perto do horizonte. Quando os antigos gregos perceberam essa faixa de luz, eles a denominaram "galaxies kuklos", ou "círculo de leite". Os romanos a chamavam de "Via Láctea". Em 1610, Galileu usou os primeiros telescópios e determinou que a luz da Via Láctea provinha de bilhões de estrelas de brilho pouco intenso que nos cercam.
Tony Hallas/Science Fiction/Getty ImagesA Via Láctea, da brilhante estrela Sirius, no canto superior direito, à Eta Carina, a nebulosa vermelha visível no horizonte, avistada das ilhas Keys, ao largo da Flórida, nos EUA
Por séculos, os astrônomos fizeram muitas perguntas básicas sobre a Via Láctea. Do que se tratava? Do que era feita? Qual era sua forma? Era difícil responder a essas perguntas, por diversas razões.
- Nós vivemos no interior da Via Láctea e isso seria como viver dentro de uma caixa gigante e tentar determinar que formato tem a caixa, do que ela é composta, etc.
- Os primeiros astrônomos sofriam limitações tecnológicas. Os primeiros telescópios não eram muito grandes, não tinham grande alcance e não conseguiam abranger grandes distâncias ou oferecer boa resolução de imagem.
- Os primeiros telescópios eram capazes apenas de detectar a luz visível. A Via Láctea contém muita poeira, o que obstruía a visão deles. Em algumas direções, olhar para a Via Láctea equivale a olhar para uma tempestade de areia.
Físico cria a primeira imagem panorâmica da Via Láctea. Ela foi feita a partir da reunião de mais de 3.000 fotografias individuais.
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- A Via Láctea é, de fato, uma galáxia - um grande sistema formado por estrelas, gases (principalmente hidrogênio), poeira e matéria escura, que órbita um centro comum e se mantém unido pela força da gravidade.
- A forma de nossa galáxia é uma espiral.
- Ao contrário da crença popular, nosso sistema solar não fica no centro da galáxia.
- A Via Láctea é apenas uma dentre as bilhões de galáxias do universo.
Acompanhe-nos em uma jornada de descoberta pela Via Láctea. Examinaremos como os astrônomos determinaram suas dimensões, forma e estrutura.
Primeiras Teorias sobre a Via Láctea
Como mencionamos, Galileu Galilei descobriu que a Via Láctea era composta de estrelas indistintas, mas qual seria sua forma? Como se pode determinar a forma de alguma coisa se você está dentro dela? No fim do século 18, o astrônomo William Herschel decidiu enfrentar a questão. Ele afirmou que, caso a Via Láctea fosse uma esfera, deveríamos ver numerosas estrelas em todas as direções. Por isso, ele e sua irmã Carolina contaram as estrelas em mais de 600 áreas do céu. Constataram que existiam mais estrelas na direção da faixa da Via Láctea do que nas porções acima ou abaixo da mesma. Herschel concluiu que a Via Láctea era uma estrutura em forma de disco. E como ele havia descoberto sobre o número semelhante de estrelas em todas as direções ao longo do disco, concluiu que o Sol ocupava posição próxima ao centro do disco.
Por volta de 1920, um astrônomo holandês chamado Jacobus Kapetyn mediu as distâncias aparentes para estrelas próximas e distantes usando a técnica da paralaxe. Como a paralaxe envolvia medir o movimento das estrelas, ele comparou o movimento de estrelas distantes ao de estrelas mais próximas. Concluiu que a Via Láctea tinha um diâmetro de cerca de 20 quiloparsecs, ou 65 mil anos-luz (um quiloparsec equivale a 3.260 anos-luz). Kapetyn também concluiu que o Sol estava no centro da Via Láctea ou bem perto dele.
Mas futuros astrônomos questionariam essas idéias e a tecnologia avançada os ajudaria a contestar essas teorias e a desenvolver medidas mais precisas.
Medindo as distâncias para as estrelas
Se você estender o braço e erguer o polegar diante dos olhos, e abrir e fechar os olhos alternadamente enquanto fixa a vista nele, verá o seu polegar aparentemente mudar de posição diante dos objetos de fundo. Essa mudança é conhecida comodeslocamento de paralaxe. À medida que você aproxima o polegar do nariz e repete o processo, percebe que esse deslocamento se acentua. Os astrônomos podem empregar a mesma técnica para medir as distâncias que nos separam dos astros. À medida que a Terra orbita o Sol, a posição de uma determinada estrela se altera com relação às demais estrelas de fundo. Ao comparar fotografias de uma estrela obtidas com intervalo de seis meses, os astrônomos podem medir o grau de deslocamento e obter o ângulo da paralaxe (metade do deslocamento de paralaxe = teta ou Θ). Quando o ângulo de paralaxe e o raio da órbita da Terra (R) são conhecidos, os astrônomos podem calcular a distância até a estrela (D) usando a trigonometria: D = R x cotangente (teta) ou D = R cotΘ. As medições de paralaxe são confiáveis para estrelas localizadas a distâncias de até 50 parsecs. Para distâncias maiores, os astrônomos precisam encontrar marcadores estelares variáveis e usar razões de distância/luminosidade (ver abaixo).
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Aglomerados globulares e nebulosas espirais
Por volta da época em que Kapetyn publicou seu modelo para a Via Láctea, seu colega Harlow Shapley percebeu que uma forma de aglomerado deestrelas chamado aglomerado globular tinha distribuição única no firmamento. Ainda que poucos aglomerados globulares estivessem presentes na faixa de luz da Via Láctea, havia muitos deles acima e abaixo dessa região. Shapely decidiu mapear a distribuição dos aglomerados globulares e medir suas distâncias usando marcadores estelares variáveis no interior dos aglomerados e a relação distância/luminosidade (ver abaixo). Shapley constatou que os aglomerados globulares estavam dispostos em distribuição esférica e concentrados próximos à constelação de Sagitário. Shapley concluiu que o centro da galáxia devia ficar próximos da constelação de Sagitário, e não do Sol, e que a Via Láctea tinha cerca de 100 quiloparsecs de diâmetro.
Shapley se envolveu em um grande debate sobre a natureza dasnebulosas espirais (traços de luz pouco intensa visíveis no céu noturno). Ele acreditava que elas constituíam "universos-ilha", ou galáxias, localizadas fora da Via Láctea. Outro astrônomo, Heber Curtis, acreditava que as nebulosas em espiral fossem parte da Via Láctea. As observações das estrelas variáveis Cefeidas por Edwin Hubble, enfim, decidiram o debate - as nebulosas ficavam realmente fora da Via Láctea.
Mas restavam questões. Que forma tinha a Via Láctea e o que exatamente existia em seu interior?
Astrônomos profissionais e amadores podem medir o brilho de uma estrela colocando um fotômetro ou dispositivo de carga acoplada em seus telescópios. Caso conheçam o brilho da estrela e a distância até ela, podem calcular a quantidade de energia que a estrela emite, ou sua luminosidade (luminosidade = brilho x 12,57 x (distância)2). É igualmente possível, caso a luminosidade de uma estrela seja conhecida, calcular a distância entre ela e a Terra. Certas estrelas - como as RR Lyrae e asvariáveis Cefeidas - podem servir como padrões de luminosidade. Elas alteram seu brilho regularmente e a luminosidade que geram está diretamente relacionada ao período em seu ciclo de brilho.
Para determinar as luminosidades de aglomerados globulares, Shapley mediu os períodos de brilho das estrelas RR Lyrae nos aglomerados. Assim que ele determinou as luminosidades, pôde calcular a distância entre elas e a Terra. Veja Como funcionam as Galáxias para determinar de que maneira o astrônomo Edwin Hubble empregou técnica semelhante com relação às estrelasvariáveis Cefeidas a fim de determinar que as nebulosas espirais estavam além dos limites da Via Láctea.
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Qual é a forma da Via Láctea
Edwin Hubble estudou as galáxias e as classificou em diversos tipos degaláxias elípticas e espirais. As galáxias espirais se caracterizam pelo formato de discos dotados de braços espirais. A Via Láctea tinha forma de disco, então tinha grande probabilidade de ser uma galáxia espiral.
Imagem cortesia Nasa
Nos anos 1930, o astrônomo R. J. Trumpler compreendeu que as estimativas de tamanho da Via Láctea apresentadas por Kapetyn e outros estudiosos estavam equivocadas porque as medições utilizadas se baseavam nos comprimentos de onda da luz visível. Trumpler concluiu que o vasto volume de poeira no plano da Via Láctea absorvia a luz visível e fazia com queestrelas e aglomerados parecessem menos brilhantes do que eram de fato. Portanto, para mapear de maneira precisa as estrelas e aglomerados estelares contidos no interior do disco da Via Láctea, os astrônomos precisavam descobrir como observar através da poeira.
O efeito Doppler
Quase da mesma maneira que o som agudo da sirene de um caminhão de bombeiro se torna mais grave à medida que o caminhão se afasta, o movimento das estrelas afeta o comprimento de onda da luz que delas recebemos. O fenômeno é conhecido como efeito Doppler. Podemos medir o efeito Doppler medindo as linhas no espectro de uma estrela e comparando-as ao espectro de uma lâmpada padrão. A quantidade do desvio Doppler nos informa a velocidade de movimento da estrela em relação a nós. Caso o espectro de uma estrela se desloque para o extremo azul, ela está se aproximando de nossa posição e caso o faça para o vermelho, a estrela estará se afastando.
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Nos anos 1950, os primeiros radiotelescópios foram inventados. Os astrônomos descobriram que átomos de hidrogênio emitem radiação nos comprimentos de onda do rádio e que essas ondas de rádio são capazes de penetrar a poeira da Via Láctea. Assim, torna-se possível mapear os braços espirais da Via Láctea. O componente essencial eram estrelas que servissem de marcadores, como as usadas para medir distâncias. Os astrônomos constataram que estrelas das classes O e B serviriam a esse propósito. Essas estrelas tinham diversas características.
- Brilho: são altamente visíveis e muitas vezes encontradas em pequenos grupos ou associações.
- Calor: emitem em múltiplos comprimentos de onda (visível, infravermelho, rádio).
- Vida curta: vivem por cerca de 100 milhões de anos, de modo que, se levarmos em conta a taxa com a qual as estrelas orbitam o centro da galáxia, elas não se afastam muito da posição em que nasceram.
Os astrônomos podiam usar radiotelescópios para mapear com precisão as posições das estrelas O e B, e recorrer ao desvio Doppler no espectro de ondas de rádio para determinar suas taxas de movimento. Quando muitas estrelas foram submetidas a esse tratamento, tornou-se possível produzir mapas ópticos e de rádio combinados dos braços em espiral da Via Láctea. Cada braço recebe o nome das constelações que abriga.
Os astrônomos acreditam que o movimento do material em torno do centro da galáxia cria ondas de densidade (áreas de alta e baixa densidade), quase como quando uma pessoa usa uma batedeira elétrica para fazer massa de bolo. Essas ondas de densidade aparentemente são a causa da natureza espiral da galáxia.
Assim, ao examinar o céu em múltiplos comprimentos de onda (rádio, infravermelho, luz visível, ultavioleta e raios X), com diversos telescópios terrestres e espaciais, podemos obter vistas diferentes da Via Láctea.
Estrutura da Via Láctea
De acordo com o sistema de classificação proposto por Edwin Hubble, a Via Láctea é uma galáxia espiral, ainda que indícios de mapeamento mais recentes apontem para a possibilidade de que seja uma galáxia espiral barrada. A Via Látea tem mais de 200 bilhões de estrelas (total estimado de acordo com sua massa). Seu diâmetro é de cerca de 100 mil anos-luz e o Solfica a cerca de 28 mil anos-luz do centro galáctico. Se observarmos a estrutura da Via Láctea tal qual apareceria vista de fora, perceberíamos as seguintes partes:
- Disco galáctico: a porção em que se localiza a maior parte das estrelas. O disco é composto por estrelas jovens e velhas, bem como por vastos volumes de gás e poeira. As estrelas que ficam no interior do disco percorrem órbitas geralmente circulares em torno do centro galáctico. As interações gravitacionais entre as estrelas fazem com que os movimentos circulares oscilem um pouco para baixo e para cima, como no caso dos cavalinhos em um carrossel. O disco se subdivide nas seguintes porções:
- Aglomerados globulares: algumas centenas deles se espalham acima e abaixo do plano do disco. Os aglomerados globulares orbitam o centro da galáxia em órbitas elípticas cujas as direções são aleatoriamente espalhadas. As estrelas dos aglomerados globulares são muito mais velhas que as do disco galáctico e eles abrigam poucos gases e poeira.
- Halo: trata-se de uma grande região, não muito iluminada, que cerca toda a galáxia. O halo é feito de gases quentes e possivelmente dematéria escura.
Todos esses componentes orbitam o núcleo e são mantidos unidos pelagravidade. Como a gravidade depende da massa, seria possível pensar que a maior parte da massa galáctica se localiza no disco ou perto dele. No entanto, ao estudar as curvas de rotação da Via Láctea e de outras galáxias, os astrônomos concluíram que a maior parte da massa fica nas porções externas da galáxia (como o halo), onde existe pouca luz gerada por estrelas ou gases.
A gravidade da Via Láctea influencia duas galáxias satélites vizinhas: aGrande Nuvem de Magalhães e a Pequena Nuvem de Magalhães (em homenagem ao explorador português Fernão de Magalhães). Elas orbitam sob o plano da Via Láctea e podem ser vistas do hemisfério sul. A Grande Nuvem de Magalhães tem cerca de 70 mil anos-luz de diâmetro e fica a 160 mil anos-luz da Via Láctea. Os astrônomos acreditam que a Via Láctea esteja extraindo gases e poeira dessas galáxias satélites.
Quantas estrelas existem na Via Láctea
Mencionamos anteriormente que os astrônomos haviam calculado o número de estrelas na Via Láctea com base na medida da massa da galáxia. Mas como se mede a massa de uma galáxia? Obviamente não se pode fazê-la subir na balança. Em vez disso, usamos o movimento orbital.
Com base na versão de Newton para a Terceira Lei do Movimento Planetário, de Kepler, a velocidade orbital de um objeto em órbita circular, e usando um pouquinho de álgebra, é possível derivar uma equação que calcule a quantidade de massa (Mr) que existe no interior de qualquer órbita circular com um raio (r).
Com base na versão de Newton para a Terceira Lei do Movimento Planetário, de Kepler, a velocidade orbital de um objeto em órbita circular, e usando um pouquinho de álgebra, é possível derivar uma equação que calcule a quantidade de massa (Mr) que existe no interior de qualquer órbita circular com um raio (r).
E.L. Wright (UCLA), COBE Project, DIRBE, Nasa
É complicado, mas é possível usar a versão de Newton para a Terceira Lei de Kepler a fim de calcular o número de estrelas na Via Láctea
- p2 = (4Π2/GM) a3(p é o período orbital, M é a massa, a é o raio orbital. G é a constante gravitacional de Newton (6,67 x 10-11 m3/kg-s2))
- Reordenando os termos para encontrar a solução de M resulta em:M = 4Π2 a3/Gp2
- Velocidade orbital de um objeto circular (v)v=2Πa/p
- Reordenando os termos para resolver p:p=2Πa/v
- Inserindo a equação de velocidade orbital na versão de Newton para a Terceira Lei de Kepler e simplificando os valores:M=av2/G
- Como se trata de uma órbita circular, a se torna o raio (r) e M se torna a massa dentro desse raio (Mr).Mr rv2/G
Para a Via Láctea, o Sol fica a uma distância de 2,6 x 1020 metros (28 mil anos-luz) e apresenta velocidade orbital de 2,2 x 105 metros/segundo (220 km/s), o que nos informa que 2 x 1049 kg ficam na órbita do Sol. Como a massa do Sol é 2 x 1030, então deve haver 1011, ou cerca de 100 bilhões, de massas solares (estrelas semelhantes ao Sol) ao longo de sua órbita. Se acrescentarmos a porção da Via Láctea que não fica na órbita do Sol, chegamos ao valor aproximado de 200 bilhões de estrelas.